sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Concerto de membros da Orquestra Sinfônica para paciente terminal, ex-morador de rua do Recife.

Seu David, 57, passou 40 anos nas ruas do Recife e se revelou profundo conhecedor de música clássica, encantando médicos e voluntários


Por Ed Wanderley - Diário de Pernambuco

Foi nas ruas que chamou de casa que Seu David descobriu a música clássica. Um acorde descoberto a cada esquina. Paixão capturada em fitas K7, que carregava consigo. Quando estabeleceu 'morada' mais fixa, ao redor do Camelódromo e do Mercado de São José, no centro do Recife, viu a coleção crescer. Os vinis, recebidos por amigos comerciários da área, admiradores do "homem da Enciclopédia Barsa". Toda lida! David Wilibaldo de Luna, aos 57 anos, vem se acostumando a impressionar quem acompanha sua passagem pelo mundo. Ex-morador e artista de rua, ele ocupa o leito 2 da Casa de Cuidados Paliativos do Hospital Pedro II, no Recife. Onde deveria ocupar-se apenas em combater o câncer, que agarrou seus pulmões e tomou-lhe os ossos, deu aulas de música, cultura, história mundial mesmo a quem tinha como cargo apenas dar-lhe conforto para esperar o inevitável. Com simplicidade, transmitiu seus valores, conquistando outros pacientes, voluntários e equipe médica. O retorno veio em forma de reconhecimento. Depois de ganhar a primeira exposição de seus quadros e o primeiro bolo de aniversário de sua vida, Seu David empresta seu nome a uma composição original, no estilo clássico, a exemplo de seus ídolos Vivaldi, Beethoven e Strauss. Ontem, sentou na primeira fila para ver o concerto "David Davida", realizado por integrantes da Orquestra Sinfônica do Recife, em sua homenagem, no hospital que fez de última casa.

O estudo, concluído apenas até a segunda série, e a falta de teto desde os 17 anos não impediram a qualidade de sua apreciação. A cada movimento de violoncelo e reverência do clarinete, uma reação com as mãos, dedos em riste, acompanhando a assinatura sonora de cada estrofe. O ouvido, apurado, foi acostumado a esse tipo de composição por ficar dia e noite grudado ao rádio de pilha sintonizado na Rádio Universitária, desde 1974. Os olhos, perdidos numa viagem própria e pessoal, davam margem ainda maior ao largo sorriso aberto ao final de cada canção. "Esse é Chopin. Um dos 63 grandes compositores mundiais", identifica, com naturalidade. "De brasileiro mesmo, só Villa-Lobos e Carlos Gomes", completa.

Há quatro meses, Seu David rejeita o próprio fim, ignorando-o. Não fala da doença, desenvolvida pelos anos em que fez de melhor amigo, um ou outro cigarro. Foi um dos 17 em cada 20 fumantes que sucumbe às consequências maliciosas da nicotina. Sabe que engrossará as estatísticas que, friamente, revelam que 12% de todos os homens acabam padecendo do mesmo tipo de câncer com o qual tem que lidar todos os dias. A dor, tenta esquecer, com o auxílio, a cada duas ou mais horas, de doses cavalares de morfina, 36 vezes superiores às ministradas em uma cirurgia comum. O ar, mal puxa sozinho. O barulho do respirador passa a lhe fazer companhia nos momentos de inconvenientes silêncios que sempre convida a repensar as escolhas de uma vida marcada por privações que lhe foram impostas.

Seu David é apenas um dos rostos que ignoramos todos os dias nas ruas. Um pernambucano, da cidade de Escada, zona da Mata, entre os pouco mais de 440 mil que não dispõem de um teto fixo ou refeições regulares. Ele dá nome e forma a um abandono. Um preconceito que dá como certo o destino de toda uma população: sobreviver sem educação ou qualidade de futuro. É também uma exceção. Não pela inteligência que impressiona ou opinião sobre política e economia que desafia a compreensão, mas por ter nome e imagem reconhecida e tratada enquanto gente em uma realidade desumana que mal permite olhar o próximo.


Ouça parte do Concerto AQUI

O concerto "David Davida" apresentou 10 clássicos e a original, que dá nome ao espetáculo. Foram 70 preciosos minutos que dão novo significado a uma vida de 20.716 dias contados. Quando deu entrada na unidade de saúde, o artista 'não tinha jeito'. Lhe restavam poucas semanas. Cento e vinte e seis dias depois, assume como meta, chegar ao aniversário: dia 3 de novembro. Com o otimismo sorridente que cativou a todos, sem querer, se faz exemplo. Por insistir em desafiar a morte, Seu David ensina a viver...

2 comentários:

António Je. Batalha disse...

Há algum tempo que não visitava o seu blog, hoje encontrei-o e demorei algum tempo a ver o que escreveu, fiquei maravilhado pois pode ver como está se preocupando com o próximo. Continue a proclamar o bom nome de Jesus e a edificar exortar e consolar os corações daqueles que precisam de Jesus. Sou feliz porque sei que nos iremos encontrar um dia, e receber o galardão dos nossos feitos.

Silvio Araujo disse...

Sr David faleceu no dia de hoje.
Leia em http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2012/09/morre-paciente-do-imip-que-fez-exposicao-de-desenhos-no-hospital.html

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