terça-feira, 17 de novembro de 2009

Todo Côro é Cênico

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Marcio Buzatto

Desde Claudio Monteverdi (1567-1643) a música não é a mesma... sobretudo a música vocal. Seus madrigais, desde os da “prima pratica” já enfocavam o texto com artifícios de retórica acentuados, depois reforçados com o uso enfático de dissonâncias e ritmos envolventes, explicitando o texto em questão. Os madrigais da “seconda pratica”, de amor e guerra, podem ser facilmente encenados pelo grupo executante, devido a grande riqueza musical sublinhada por elementos praticamente cênicos do discurso musical. Com “Orfeu”, uma das primeiras grandes formas operísticas da música ocidental do segundo milênio, ele escancara a tendência cênica deste movimento, quebrando com a tradição renascentista e prenunciando os rumos de uma música mais envolvida com a palavra e seu sentido, indo ao encontro do teatro, que mais tarde se transformaria num dos gêneros mais rebuscados da música: a ópera. Uma fábula em música!

Dito isto, entremos no assunto de uma maneira mais contemporânea e prática, relacionada com nossos coros amadores: se o coro está sendo visto enquanto executa uma música, ele está sendo cênico! A entrada e saída do palco, o posicionamento dos cantores e maestro, a forma de se vestir, a fisionomia de cada um, o respirar, a expressão facial, os poucos segundos silenciosos antes e depois de a música soar, o movimentar de braços, a maneira de se portar e o cantar, por si só, chamam a atenção ao visual, reforçado pelo comportamento do coro ao realizar cada frase musical.
Não bastasse isso, ainda sem pensarmos em movimentação cênica propriamente dita, cada música exige do coro um tipo de sonoridade (diferentes partes de uma mesma música também o podem exigir), cada cantor procurará interpretar o sentido do texto de alguma forma, e no conjunto a forma coletiva de interpretação aparecerá, para ser ouvida e vista pelo público. Um levantar de sobrancelhas numa parte em pianíssimo, um leve sorriso após o acorde final, o balanço corporal quando ritmos tomam espaço, o enrugar da testa em notas muito agudas, o olhar de concentração na hora de estabelecer o tom inicial, a distração de um ou outro durante a música, a gesticulação do regente, a atenção ao solista, o andar da melodia entre os diferentes naipes: sob este ponto de vista tudo se torna cênico a partir do momento em que se está sendo visto em um palco de apresentações, mesmo sem tal pretensão.

Outro ponto importante a ser considerado é que tudo o que é feito com o corpo acaba influindo de uma ou outra forma na voz. Felizes os que sabem usá-lo em benefício da música!

Praticamente todo músculo acionado no corpo durante o canto causará algum efeito no som produzido. Mesmo um enrijecer de músculos do pé ou pernas, que estão distantes do aparelho fonador, pode deixar a voz mais áspera ou reduzir a agilidade vocal. O mesmo ou outros efeitos podem acontecer com qualquer músculo erroneamente acionado durante uma execução vocal, quando estes vão influenciar de alguma forma a laringe, modificando assim o som. O simples fato de cantar tenso (braços e pernas, por exemplo) modificará para pior as qualidades vocais, e se a tensão atingir o aparelho respiratório, ou então o diafragma, efeitos desastrosos podem prejudicar a interpretação vocal. Quando esta consciência é levada para o desenvolver do coro em seus ensaios, torna-se uma ferramenta útil para melhorar o funcionamento vocal e auxiliar no rendimento em palco e na própria “atuação cênica” do coro, seja ela como for.

Um trabalho de expressão corporal bem dirigido pode suprir dificuldades do coro, tais como: desinibição, presença de palco, capacidade de improvisar em situações adversas, noção de espaço, lidar com acústicas diferentes, projeção de voz, sincronia rítmica, atenção ao coletivo, expressão corporal e facial, idéia de interpretação musical e naturalidade do momento de apresentação. Ainda, se aliado a um trabalho vocal bem orientado, os resultados podem facilitar em muito a interpretação de qualquer repertório, desde o mais sério ao mais extrovertido, e ainda intensificar a relação entre coro e platéia.

Além dos benefícios vocais que um trabalho corporal pode trazer ao coro, há outro aspecto que é influenciado diretamente: o ritmo. O relaxamento dos músculos que não precisam estar tensos na execução vocal, se trabalhado com o auxílio de elaborações rítmicas, facilita o aprendizado de figuras complexas e até mesmo melhora a memorização das músicas, possibilitando o crescimento do grupo e apresentando alternativas no enfrentamento de ritmos irregulares ou muito elaborados. No caso de músicas em que o ritmo é fator predominante, exercícios corporais, ou de percussão corporal são praticamente indispensáveis, aliando o movimento ao som. A manutenção do pulso musical fica mais natural.

Ponderando todos os elementos envolvidos na estruturação de um coro, se este se intitular “cênico”, as responsabilidades só aumentam e o condutor é exigido em dobro. Não é fácil colocar o coro a funcionar bem (mesmo se não contiver qualquer movimentação de palco) realizando de forma satisfatória a partitura com boa afinação, sonoridade, ritmo, dicção, fraseado, dinâmica, colocação vocal, sincronia, equilíbrio, nuances musicais e diferenciações de afetos – só para citar alguns dos muitos elementos formadores de uma boa interpretação musical/coral. Também não é fácil realizar com qualidade uma interpretação puramente cênica... Se juntos os dois aspectos, cena e música, fica muito grande a gama de detalhes a serem observados e o treinamento necessário para colocar um trabalho satisfatório em palco.

É curioso que na maioria dos casos mal sucedidos, sempre a música parece estar de lado, em detrimento do posicionamento em palco ou da movimentação. Talvez por tamanha exigência que esta arte impõe (tanto de qualidade musical quanto de interpretação cênica), é que tenhamos tão poucos espetáculos de coro cênico com qualidade. A divisão de responsabilidades facilita um melhor resultado. São vários os setores de um espetáculo que merecem atenção integral, desde a direção musical, preparação vocal, direção cênica, iluminação, sonorização, cenário, imprensa, estruturação do local, e assim por diante... Por outro lado, quão prazeroso é um espetáculo bem trabalhado, onde tudo funciona em sincronia sem deixar de lado a boa colocação vocal, a interpretação musical cuidadosa e uma comunicação cênica tanto coerente quanto expressiva: uma obra de arte! Coro cênico... casa cheia!
Marcio Buzatto
Bacharel em Regência e Composição Musical (UFRGS)
Prof. Regência e Canto Coral na UFSM
Maestro do Coro da URI-Erechim e Coro de Câmara da UFSM
Coord. Departamento de Regentes FECORS

O artigo acima trata do desempenho de coros num ambiente tipicamente secular (teatros, óperas, shows etc) não focalizando coros de igreja, cujos objetivos e desempenhos são diversos do abordado, porém filtrando, obviamente, o que não se deve utilizar no templo durante o culto divino ou o que ferir a liturgia, há muito o que se perceber de técnico, prático e de importante para melhor desempenho e transmissão da mensagem cantada por nossos corais, afinal, todo o côro é de fato cênico.

Colossenses 3.17:
"E tudo quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai."

I Coríntios 10.31b:
"...fazei tudo para glória de Deus"

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